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Santo Tomás de Aquino responde: O martírio é uma virtude?


Parece que o martírio não é um ato de virtude:
1. Com efeito, todo ato de virtude é um ato voluntário. Ora, o martírio nem sempre é voluntário, como se vê pelos santos inocentes assassinados por causa do Cristo, a respeito dos quais Hilário escreve: “Foram levados ao ápice das alegrias eternas pela glória do martírio”. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
2. Além disso, nenhum ilícito pode ser ato de virtude. Ora, matar a si próprio é ilícito. Entretanto, alguns martírios foram consumados desta maneira, conforme o relato de Agostinho: “No tempo das perseguições, algumas santas mulheres, para evitar os perseguidores de seu pudor, se lançaram ao rio e assim morreram; e seu martírio é celebrado na Igreja Católica com grande veneração”. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
3. Ademais, é louvável que alguém se ofereça espontaneamente para cumprir um ato de virtude. Ora, não é louvável que alguém se apresente para o martírio, pois isto pode parecer presunçoso e perigoso. Logo, o martírio não é um ato de virtude.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, somente um ato de virtude pode merecer a recompensa da bem-aventurança eterna. Ora, esta recompensa se deve ao martírio, conforme a palavra do Evangelho: “Felizes aqueles que sofrem perseguição pelo amor da justiça, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5, 10). Logo, o martírio é um ato de virtude.
Cabe à virtude conservar alguém no bem da razão. Mas o bem da razão consiste na verdade, como em seu objeto próprio; e na justiça, como sendo seu efeito próprio. Ora, pertence à razão do martírio que o mártir se mantenha firme na verdade e na justiça contra os assaltos dos perseguidores. E fica assim claro que o martírio é um ato de virtude.
Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:
1. Alguns autores sustentaram que o uso do livre-arbítrio se tinha desenvolvido milagrosamente entre os santos Inocentes, de tal maneira que eles teriam sofrido o martírio voluntariamente. Mas, como isso não é confirmado por nenhum texto da Escritura Sagrada, é melhor dizer que a glória do martírio, que outros mereceram por sua própria vontade, aquelas crianças assassinadas conseguiram pela graça de Deus. Porque a efusão de sangue pelo Cristo faz as vezes do batismo. Portanto, assim como, para as crianças batizadas, o mérito de Cristo age, pelo batismo, para obter a glória, assim também, no caso das crianças sacrificadas pelo nome de Cristo, o mérito de Cristo é suficientemente eficaz para lhes alcançar a palma do martírio. É por isso que Agostinho diz, como que interpelando estas crianças: “Aquele que duvidar que recebestes a coroa porque sofrestes pelo Cristo, deve pensar também que o batismo do Cristo não tem nenhum proveito para as crianças. Não tínheis ainda idade para crer no Cristo que iria sofrer; mas já tínheis a carne na qual iríeis sofrer vossa paixão pelo Cristo que seria sacrificado”.
2. Na mesma passagem Agostinho admite como possível que “a autoridade divina tenha persuadido a Igreja, por testemunhos dignos de fé, que ela devia honrar a memória destas santas”.
3. Os preceitos da lei têm por objeto os atos das virtudes. Ora, certos preceitos da lei divina foram dados aos homens para preparar as almas deles, isto é, para que eles estejam prontos a agir de tal ou tal maneira quando chegar a ocasião oportuna. Desta forma, certos preceitos se ligam ao ato de virtude segundo a razão desta preparação, de tal sorte que, quando for o caso, o homem assim preparado agirá de conformidade com a razão. E isto deve ser observado principalmente a respeito do martírio que consiste em suportar devidamente os sofrimentos infligidos injustamente. Um homem nunca deve oferecer a outro uma ocasião de agir injustamente. Mas se o outro agir injustamente o primeiro deve suportá-lo na medida do que sente.
Fonte: Suma Teológica II-II, q.124, a.1