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Da eternidade do inferno.

Et ibunt hi in supplicium aeternum – “Estes irão para o suplício eterno” (Matth. 25, 46).

Sumário. A eternidade do inferno não é uma simples opinião, mas sim uma verdade de fé fundada no testemunho de Deus na Santa Escritura, na qual se diz repetidas vezes que os desgraçados pecadores, uma vez lançados naqueles abismos, serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos. Se alguém por um dia de divertimento se deixasse condenar a trinta anos de prisão, tê-lo-íamos por louco. Que maior loucura não seria a nossa, se por um momento de vil prazer nos condenássemos a queimar no fogo para sempre? A ficar privados para sempre da posse do soberano bem, que é Deus?

I. Se o inferno não fosse eterno, deixaria de ser inferno. A pena que dura pouco, não é grande pena. Quando se rompe a um doente um abscesso, quando a outro se queima uma úlcera, a dor é viva, mas, como passa rapidamente, o tormento não é grande. Que sofrimento porém não seria, se aquela incisão, aquela operação por meio do fogo, continuasse por uma semana, por um mês inteiro? Quando o sofrimento é bastante prolongado, apesar de leve, como uma dor de olhos, uma dor de dentes, torna-se insuportável. – Mas para que falar de sofrimento? Mesmo uma comédia, uma música que se prolongasse muito ou durasse um dia inteiro, não se poderia aturar pelo grande fastio. Que será, pois, do inferno, onde não se trata de assistir à mesma comédia, de ouvir a mesma música, onde não se tem unicamente a sofrer uma dor de olhos ou de dentes, onde não se sente só o tormento de uma incisão ou de um ferro em brasa, mas onde estão reunidos todos os tormentos e todas as dores? E isto, por quanto tempo? Por toda a eternidade! Cruciabuntur die ac nocte in saecula saeculorum (1) – “Serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos”.

Esta eternidade não é simples opinião, mas sim uma verdade de fé, atestada repetidas vezes por Deus nas Sagradas Escrituras. Só no capítulo 9 de São Marcos Jesus Cristo afirma até três vezes que o verme roedor e a consciência dos condenados nunca morrerá: Vermis eorum non moritur; até cinco vezes repete que o fogo que os abrasa, nunca será apagado: Et ignis eorum non extinguitur; e finalmente conclui dizendo:Omnis igne salietur (2) – “Será todo salgado pelo fogo”. Assim como o sal tem a propriedade de conservar as cosias, assim o fogo do inferno, ao mesmo tempo que atormenta os réprobos, produz neles o efeito de sal, conservando-lhes a vida. Desgraçados réprobos!

Que loucura não seria se por um dia de divertimento alguém se deixasse encerrar num calabouço vinte ou trinta anos? Se o inferno durasse cem anos – cem anos! Que digo? – se durasse somente dois ou três anos, seria já grande loucura condenar-se ao fogo esses dois ou três anos por um momento de vil prazer. Mas não se trata de trinta, nem de cem, nem de mil, nem de cem mil anos; trata-se da eternidade, trata-se de sofrer para sempre os mesmos tormentos, sem nunca esperar fim nem momento de descanso.

II. Tinham razão os santos para temer e gemer, enquanto estavam no mundo e, portanto, em risco de se perderem. O Bem-aventurado Isaías, posto que parasse os dias no deserto entre jejuns e penitências, exclamava chorando: Desgraçado de mim, que ainda não escapei ao perigo da condenação! Nondum a gehennae igne sum liber! Mas se os santos tremiam, nós, que somos pecadores, teremos a presunção de nos julgar seguros?

Ah, meu Deus! Se me tivésseis lançado no inferno, como tantas vezes mereci, e depois me tivésseis tirado d’ali pela vossa misericórdia, quanto Vos seria obrigado! Que vida santa não teria desde então principiado! Agora por uma misericórdia maior me preservastes de cair no inferno: que farei? Tornarei a ofender-Vos e a provocar a vossa indignação, afim de que me condeneis realmente a arder nessa prisão dos revoltosos contra Vós, onde já ardem tantas almas que cometeram menos pecados que eu? Ah! Meu Redentor, é o que eu fiz no passado; em lugar de aproveitar o tempo que me daveis para chorar os meus pecados, abusei dele para excitar a vossa ira. Agradeço a vossa infinita bondade o ter-me aturado tanto tempo. Se não fosse infinita, como me houvera sofrido?

Graças Vos dou por me haverdes esperado até aqui com tamanha paciência, e graças Vos dou sobretudo pela luz que me concedeis agora, luz que me deixa ver a minha demência e o agravo que Vos fiz, ultrajando-Vos com tantos pecados. Detesto-os, meu Jesus, e arrependo-me de todo o coração perdoai-me, em consideração à vossa Paixão e ajudai-me com a vossa graça, a não mais Vos ofender. Com razão devo temer que, depois de mais um pecado mortal, me abandoneis. – Ah, Senhor! Rogo-Vos que me ponhais sempre diante dos olhos este justo temor, em particular quando o demônio novamente me provocar a vos ofender. Amo-Vos, meu Deus, e não Vos quero mais perder; ajudai-me com a vossa graça. – Ajudai-me também vós, ó Virgem Santíssima, e fazei com que em minhas tentações sempre recorra a vós, afim de que nunca mais perca o meu Deus. Ó Maria, vós sois a minha esperança. (II 123.)

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1. Apoc. 20, 10.
2. Marc. 9, 48.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 66-68.)

§ IV. DA GUARDA DO CORAÇÃO - Tratado da Castidade

A modéstia dos olhos pouco nos servirá se não vigiarmos sobre o nosso coração. "Aplica-te com todo o cuidado possível à guarda do teu coração, diz o Sábio (Prov 4, 27), porque é dele que procede a vida". É aqui o lugar apropiado para se dizer algumas  palavras sobre as amizades e, primeiramente, sobre as santas, depois sobre as puramente  naturais e, afinal, sobre as perigosas
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 1) Descrevendo São Paulo a corrupção moral dos gentios, enumerava entre seus  vícios a falta de sentimento e de susceptibilidade para a amizade. A amizade, segundo  São Tomás, é mesmo uma virtude. A perfeição não proíbe se entretenham amizades, diz  São Francisco de Sales; exige somente que sejam santas e edificantes, a saber, só devem ser mantidas aquelas uniões espirituais por meio das quais duas, três ou mais pessoas,  comunicam entre si seus exercícios de devoção, seus desejos piedosos e sentimentos  nobres, tornando-se como que um só coração e uma só alma para a glória de Deus e o  bem espiritual próprio e alheio. Com toda a razão podem tais almas exclamar: "Vede  quão bom e suave é habitarem os irmãos em união" (Sl 132, 1). São Francisco diz mais  que, em tal caso, o suave bálsamo da caridade destila de coração em coração por meio  dessas mútuas comunicações, e bem pode-se dizer que Deus lança Sua benção sobre tais  amizades, por toda a eternidade (Fil., III, c. 19).

Tais amizades são recomendadas pela Escritura mesma, em termos eloqüentes:  "Nada se pode comparar com o valor de um amigo fiel, e o valor do ouro e da prata não  iguala a bondade de sua fidelidade" (Ecli 6, 16). "Um amigo fiel é um remédio para a vida e a mortalidade, e os que temem o Senhor encontram um tal" (Idem).

 Mas como podeis aconselhar as amizades particulares, dirá alguém, quando elas são tão rigorosamente condenadas por todos os ascetas? Respondo: As amizades particulares são proibidas unicamente nos claustros e com toda a razão, pois é imperiosamente necessário que todos os religiosos se amem mutuamente com amor fraterno, para que haja uma vida comum claustral. Ora, num claustro, as amizades particulares podem facilmente ocasionar perturbações dessa mútua caridade, dando ocasião a invejas, suspeitas e outras misérias humanas. São Basílio não hesitou dizer que as amizades particulares em um convento são uma sementeira perpétua de invejas, de desconfianças e inimizades. O mesmo acontece nas famílias em que o pai ou a mãe tem mais carinhos para um filho que para os outros. Os filhos de Jacó odiavam seu irmão José, porque seu pai lhe dedicava um amor especial.

 Não há, além disso, nenhum motivo de se alimentar tais amizades num estado  religioso, pois, num convento, onde reinam a disciplina e a ordem, todos os membros tendem ao mesmo fim, à perfeição, e não é necessário travar amizades particulares para animar-se mutuamente ao serviço de Deus e ao trabalho do aperfeiçoamento próprio.

 Os que, vivendo no mundo, desejam dedicar-se à prática da virtude verdadeira e sólida, precisam, pelo contrário, de se unir aos outros por uma amizade santa e edificante, para poderem, por meio dela, se animar, se auxiliar e se estimular ao bem. Há no mundo poucas pessoas que tendem à perfeição e muitas que não possuem o espírito de Deus e, por isso, é preciso que os bons, quanto possível, evitem os que podem impedir seu adiantamento espiritual e travem amizade com os que os podem auxiliar na prática do bem.

 2) Quanto às amizades puramente naturais, deve-se dizer que elas têm seu fundamento na nossa natureza, que nos compele a amar nossos pais, nossos benfeitores e todos aqueles em quem vemos belas qualidades e com quem simpatizamos. Esta espécie de amizade é o laço da família e da sociedade, mas facilmente degenera em amizades falsas; por exemplo, se os pais, por um carinho demasiado, toleram as faltas de seus filhos, ou se um amigo ofende a Deus para agradar a seu amigo, etc. As amizades naturais só são agradáveis a Deus se as santificarmos por meio da boa intenção; por exemplo, amando a nossos pais e amigos por amor de Deus.

 3) Por amizades perigosas entendem-se, em particular, as sensuais, isto é,  aquelas que se baseiam sobre uma complacência sensual, sobre a fruição comum de  prazeres dos sentidos, sobre certas qualidades fúteis e vãs de espírito e coração. Essas  amizades são já por si perigosas, mesmo que, no começo, nada tenham de inconveniente, e devemos guardar nosso coração desembaraçado delas.

 a) "Quem não evita relações perigosas, cai facilmente no abismo", diz Santo  Agostinho (Serm. 293). O triste exemplo de Salomão bastaria para nos encher de terror.  Depois de ter sido amado tanto por Deus, servindo ao Espírito Santo de mão para  escrever, travou relações com mulheres pagãs, já na sua velhice, e caiu tão  profundamente que chegou a sacrificar aos deuses. Isso, porém, não nos deve estranhar,  pois, será para admirar que alguém se queime, permanecendo no meio das chamas? -  pergunta São Cipriano (De sing. cler.).

Mas em nossas conversas, graças a Deus, não ocorre nada de mal, dirá alguém. Respondo: Todas as amizades que têm sua origem em afeições meramente materiais são, pelo menos, um grande impedimento à perfeição, ainda que não dessem ocasião a outras coisas. Elas, no mínimo, fazem-nos perder o espírito de oração e recolhimento interior; a alma que está presa por uma afeição natural poderá achar-se corporalmente na igreja, mas seu espírito estará se entretendo com o objeto de seu amor; perderá o amor aos Santos Sacramentos; não será mais sincera para com seu confessor, temendo que ele a obrigue a romper com essa cadeia e, envergonhando-se de lhe descobrir sua afeição, não lhe dirá a causa de sua tibieza, e assim se agrava, de dia para dia, seu estado lastimoso. Ao ouvir que fala mal da pessoa amada, se enfurece, defende-a calorosamente; descuida-se da obediência, pois quando o confessor a exorta a renunciar a tal amizade, procura mil desculpas para não ter de obedecer.

 Não é só grande a perda espiritual que se sofre com essas amizades baseadas sobre certas qualidades externas duma pessoa, mas, principalmente se for doutro sexo, é também enorme o perigo que se corre de se se perder eternamente. No começo tais amizades parecem indiferentes, mas tornam-se pouco a pouco pecaminosas e, enfim, arrastam a alma ao pecado mortal. "São como o fogo e a palha, e o demônio não cessa de assoprar até irromper o incêndio", diz São Jerônimo.

 Pessoas de diferentes sexos abrasam-se por causa da muita familiaridade, com a mesma facilidade com que a palha atingida pelo fogo, e, em certo sentido, até com mais facilidade, porque o demônio emprega tudo quanto é apto para atiçar o fogo. Santa Teresa viu-se um dia transportada ao inferno, onde Deus lhe mostrou o lugar que lhe preparara, se não rompesse com um apego puramente natural a um seu parente.

 b) Se sentires em teu coração, alma cristã, uma tal afeição para com alguém, não há outro remédio para te libertares dela, senão cortá-la resolutamente de uma vez para sempre, pois, se quiseres renunciá-la pouco apouco, crê-me, nunca chegarás a desfazerte dela. Essas cadeias são dificílimas de romper, e só o conseguirá quem as quebrar violentamente, duma só vez. E não venhas com a desculpa de que, até agora, nada ocorreu de inconveniente, pois deves saber que o demônio não começa com o pior, mas só pouco a pouco leva a alma imprudente às bordas do precipício e, então, com um leve empurrão, precipita-as no abismo.

 É uma máxima aceita por todos os mestres da vida espiritual de que, neste ponto, não há outro remédio senão fugir e afastar-se da ocasião. São Filipe Néri costumava dizer que, nesse combate, só os covardes saem vencedores, isto é, os que fogem da ocasião. Podemos resistir aos outros vícios ficando na ocasião, diz São Tomás (De mod. conf., c. 14), fazendo violência contra nós mesmos; mas o vício contrário à pureza, porém, só o poderemos vencer fugindo da ocasião e renunciando às afeições perigosas.

 Se sentires, porém, teu coração livre e desembaraçado de tais afeições, toma todo o cuidado possível para não te emaranhares em laço algum, como já se tem dado a muitos em razão de sua negligência. Eis o conselho que te dá São Jerônimo (Ep. ad Eust.): "Se, no trato com alguém, notares que alguma afeição desregrada se quer apoderar de teu coração, apressa-te a sufocá-la antes que se torne um gigante. Enquanto o leão é ainda pequeno, pode ser facilmente trucidado; uma vez crescido, torna-se-á mui difícil e humanamente impossível".

 Coisa verdadeiramente lamentável e vergonhosa seria se permitisses que fizessem, em tua presença, gracejos indecentes. Não julgues que não pecas calando-te e simplesmente ouvindo tais gracejos; se não evitares o mais depressa possível a companhia de um homem tão insolente, já cooperaste com o seu pecado e te fizeste réu dele. Se receberes de alguém uma carta com palavras amorosas, rasga-a imediatamente
ou lança-a ao fogo e não lhe dês resposta. Se, por motivo grave, tiveres de responder, faze-o então em poucas e sérias palavras, e não dês a entender que notaste as tais palavras e muito menos que achaste nelas qualquer prazer.

 c) Não repliques também que não há perigo, porque a pessoa de que se trata é piedosa. São Tomás de Aquino diz (De mod. conf., c. 14): "Quanto mais santas são as pessoas pelas quais sentimos afeição particular, tanto mais devemos nos acautelar, porque o alto apreço que fazemos de sua virtude mais nos estimula ainda a amá-las". O padre Sertório Caputo, da Companhia de Jesus, diz: "O demônio, a princípio, nos inspira amor à virtude daquela pessoa, depois o amor à própria pessoa e, finalmente, nos lança na perdição". O Doutor Angélico faz notar que o demônio sabe perfeitamente esconder um tal perigo: no começo não dispara seta alguma que pareça envenenada, mas só tais que excitem a afeição, ocasionando leves feridas do coração; em seguida, quando o amor já está aceso, essas pessoas já não se tratam mais como anjos, mas como homens de carne e sangue: trocam repetidos olhares e palavras amorosas, desejam estar muitas vezes a sós, juntas e, por fim, a piedade espiritual degenera em amor carnal.

d) São Boaventura indica cinco sinais dos quais se pode deduzir se a afeição que a alguém nos prende é impura. Primeiro: se se entretêm conversas inúteis; e inúteis são todas as que levam muito tempo. Segundo: se ocorrem olhares e louvores mútuos. Terceiro: se se desculpam as faltas reciprocamente [evitando correções para não desagradar]. Quarto: se aparecem pequenos ciúmes. Quinto: se a separação causa certa inquietação. Eu ajunto ainda: Se se sente grande prazer e gosto nas maneiras ou gentileza natural da pessoa amada, se se deseja que a afeição seja correspondida, e se se não gosta de que outros observem, ouçam ou falem disso.

 e) Mas, mesmo as pessoas que pretendem contrair matrimônio, estarão obrigadas a sufocar a inclinação ou simpatia recíproca, suposto mesmo que seja honesta? me perguntará alguém. Se esses futuros esposos estiverem animados de tais sentimentos, que estejam prontos a empregar todos os cuidados para tornar remota a ocasião próxima do pecado, e resolvidos a nunca ofender a Deus por causa de tal afeição, não precisarão romper com ela. A experiência, porêm, ensina que os mais nobres sentimentos degeneram facilmente em paixão.

 Por esse motivo os teólogos exigem muita cautela com essas pessoas. Sabendo o quanto o coração humano é inclinado ao pecado e quão fraco quando dominado por uma paixão, só permitem tais relacionamentos entre os jovens quando estão em idade e têm vontade séria de se casar; além disso, que não sejam travadas sem o consentimento dos pais, que não se prolonguem por muito tempo e só se namorem quando estiver próximo o casamento; também lhes interditam a conversa a sós, longe das vistas dos pais, grande familiaridade, e tudo o que possa manchar a pureza da alma, seja por pensamentos, olhares, palavras ou gestos.

 Do filho de Tobias podemos aprender como os jovens devem se preparar para o casamento. Na cidade de Ragés, na Média, vivia uma piedosa donzela, de nome Sara, filha de Raguel. Estava profundamente aflita porque sete rapazes, que a haviam sucessivamente desposado, haviam sido mortos pelo demônio da impureza, Asmodeu, na primeira noite depois das núpcias. Ora, o anjo Rafael, que acompanhara o jovem Tobias em sua viagem a Ragés, aconselhou-o a pedir Sara em casamento. Ele, porém, a par do ocorrido com os outros homens, temia expor-se ao mesmo perigo. O Anjo, porém, tranquilizou-o, dizendo: "Ouve-me... o de mônio só tem poder sobre aqueles que abraçam o estado conjugal excluindo a Deus de seus pensamentos, para satisfazerem unicamente a sua concupiscência, como o cavalo e a mula, que não têm entendimento. Tu, porém, quando receberes a Sara, entra com ela no teu quarto por três dias e três noites, guardando continência, e não te entregues a outra coisa que à oração, e então a receberás em matrimônio no temor do Senhor, levado mais pelo desejo de ter filhos que pela concupiscência, para que sejas abençoado e teus filhos sirvam e glorifiquem a Deus; então nada terás a temer do demônio". O jovem Tobias seguiu esse conselho, e seu casamento foi muito abençoado por Deus. Notemos igualmente as quatro exortações dadas a Sara por seus pais, ao se despedirem dela: Primeiro, honra a teu sogro; segundo, ama a teu marido; terceiro, cuida em governar bem tua casa; quarto, porta-te em tudo irrepreensivelmente. Estes avisos devem servir de norma a todos os jovens que pretendem contrair matrimônio.

 f) O que dissemos até aqui se refere ao trato com pessoas de diferente sexo. O amor desregrado, todavia, pode existir também existir entre pessoas do mesmo sexo, principalmente se são ainda moços e existe entre eles uma familiaridade por demais íntima. A este respeito, São Basílio diz o seguinte (Serm. de abd. rev.): "Vós que sois ainda jovens, evitai a companhia de vossos iguais, pois, por meio dessas amizades, o demônio já arrastou a muitos para o inferno". "Alguns começaram com uma afeição aparentemente santa, continua ele, mas pouco a pouco precipitou-os o demônio num lodaçal de vícios os mais abomináveis". Santa Ângela de Foligno se exprime de modo semelhante (Vit., c. 64): "Ainda que seja o amor a fonte de todo o bem, não deixa de ser igualmente a fonte de todo o mal. Não falo do amor impuro, que deve ser evitado em
todo o caso, mas da inclinação, em si inocente, que facilmente pode degenerar em amor desordenado. O trato mui assíduo com outro, com protestos de afeição, tem por consequência tornar nocivo o amor, visto que ele prende estreitamente um coração ao outro, obscurecendo a afeição crescente cada vez mais a razão. Em pouco tempo só quererá um o que o outro quer, e então não terá mais coragem de resistir ao outro quando for convidado ao mal, e, assim, se perderão ambos".

 Por isso, os que dedicam à educação da mocidade estão gravemente obrigados a ter os olhos abertos nesse ponto, e não precisam ter escrúpulos, suspeitando mal com algum motivo. Se noterem qualquer apego ou familiaridade entre dois jovens, intervenham imediatamente e conservem-nos rigorosamente separados um do outro.

 g) Aqui na terra cada um de nós anda por caminhos escabrosos e em trevas, e se, além disso, ainda um anjo mau, isto é, um mau companheiro, que é pior que um demônio, nos persegue e impele à perdição, como poderemos escapar ilesos? Já Platão dizia: "Tomarás os mesmos modos daqueles com quem convives". Segundo São João Crisóstomo, para se certificar dos hábitos de alguém, basta saber com quem ele anda, já que os amigos ou são ou fazem-se semelhantes uns aos outros. E isso por duas causas: primeiro, porque um se esforça por imitar o outro para lhe ser agradável; segundo, porque o homem, como nota Sêneca, é inclinado a fazer o que vê os outros fazerem. Dos israelitas lemos: "Eles se mesclaram com os gentios e aprenderam suas obras" (Sl 105, 35). Devemos, portanto, não só fugir do comércio com os impuros, diz o Sábio, mas também nos conservarmos longe de seus caminhos: "Meu filho, não andes com eles e não ponhas o pé em seus caminhos" (Prov 1, 15). Devemos evitar todo o trato com eles, suas conversas ou presentes, com os quais procuram nos enredar. "Meu filho, se os pecadores te atraírem com seus afagos, não condescendas com eles" (Prov 1, 10). "Cairá, talvez, uma ave, no laço armado na terra, sem a isca?" (Am 3, 5). O demônio serve-se dos maus amigos como de iscas, segundo Jeremias, para prender as almas em suas redes de pecado. "Meus inimigos, sem motivo, prenderam-me como se prende uma ave" (Jer 3, 52). Ele diz 'sem motivo' porque, pergunto-se a um tal sedutor por que aliciou sua pobre vítima ao pecado, responderá: não havia motivo; eu só queria que ela fizesse como eu. É exatamente essa a astúcia do demônio, diz Santo Efrém: "Capturada uma alma em sua rede, serve-se dela como de uma armadilha para prender a outra" (De rect. viv. rat., c. 22).

 Fujamos, pois, a toda familiaridade com tais escorpiões infernais, como se foge da peste. Digo: fujamos à familiaridade, isto é, não travemos amizade com homens viciosos, evitando tomar parte em sua mesa, banquetes ou outros convívios com eles. É impossível evitar todo o comércio com eles, porque então teríamos de sair deste mundo, segundo o Apóstolo (I Cor 5, 10); contudo, é bem possível evitar um trato mais familiar com eles, seguindo o conselho do mesmo Apóstolo: "Eu vos escrevi que não tenhais comunicação com eles... com um tal não deveis nem sequer cear". Disse ainda: Fujamos de tais escorpiões, pois o profeta Ezequiel designa assim os sedutores: "Pervertedores estão contigo e habitas com escorpiões" (Ez 2, 6).

 Não ousarias, alma cristã, habitar com escorpiões, e certamente te afastarias com toda a pressa de sua proximidade. Pois assim deves evitar os amigos que dão escândalo e envenenam a tua alma com maus exemplos e conversas perversas. Quanto mais estreitamente estão ligados a nós, tanto mais perniciosos se tornam. "Os inimigos do homem são os seus domésticos" (Mat 10, 36). Na Sagrada Escritura se diz: "Quem se compadecerá de um encantador mordido pela serpente e de todos os que se aproximam de animais ferozes? Assim também, quem se compadecerá daquele que se torna companheiro de um homem iníquo?" (Ecli 12, 13). Se um tal homem, por motivo do perigo a que se expõe, cai no pecado e se precipita na condenação eterna, ninguém, nem Deus nem os homens, terá compaixão dele, pois já fôra advertido do perigo.

§ III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS - Tratado da Castidade

Quase todas as paixões que se revoltam contra nosso espírito têm sua origem na
liberdade desenfreada dos olhos, pois os olhares livres são os que despertam em nós, de
ordinário, as inclinações desregradas. "Fiz um contrato com meus olhos de não cogitar
sequer em uma virgem", diz Jó (Job 31, 1). Mas, por que diz ele de não pensar sequer
em uma virgem? Não parece que deveria dizer: Fiz um contrato com meus olhos de não
olhar sequer? Não, ele tem toda a razão de falar assim, porque o pensamento está
intimamente ligado ao olhar, não se podendo separar um do outro, e, para não ter maus
pensamentos, propôs-se esse santo homem nunca olhar para uma virgem.
Santo Agostinho diz: "Do olhar nasce o pensamento, e do pensamento a
concupiscência". Se Eva não tivesse olhado para o fruto proibido, não teria pecado; ela,
porém, achou gosto em contemplá-lo, parecendo-lhe bom e belo; apanhou-o então, e
fez-se culpada da desobediência.
Aqui vemos como o demônio nos tenta primeiramente a olhar, depois a desejar
e, finalmente, a consentir. Por isso nos assegura São Jerônimo que o demônio só
necessita de nosso começo: dá-se por satisfeito se lhe abrimos a metade da porta, pois
ele saberá conquistar a outra metade. Um olhar voluntário, lançado a uma pessoa do
outro sexo, acende uma faísca infernal que precipita a alma na perdição. "As primeiras
setas que ferem as almas castas, diz São Bernardo (De mod. ben. viv., serm. 23), e não
raro as matam, entram pelos olhos". Por causa dos olhos caiu Davi, esse homem
segundo o coração de Deus. Por causa dos olhos caiu Salomão, esse instrumento do
Espírito Santo. Por causa dos olhos, quantas almas não se perderam eternamente?
Vigie, pois, cada um sobre seus olhos, se não quiser chorar uma vez com
Jeremias: "Meus olhos me roubaram a vida" (Jer 3, 51); as afeições criminosas que
penetraram em meu coração por causa dos meus olhares, lhe deram a morte. São
Gregório diz (Mor. 1, 21, c. 2): "Se não reprimires os olhos, tornar-se-ão ganchos do
inferno, que a força nos arrastarão e nos obrigarão, por assim dizer, a pecar contra a
nossa vontade". "Quem contempla objeto perigoso, acrescenta o Santo, começa a querer
o que antes não queria". É também o que diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando
diz que a bela Judite escravizou a alma de Holofernes, apenas este a contemplou.
Sêneca diz que a cegueira é mui útil para a conservação da inocência. Seguindo
esta máxima, um filósofo pagão arrancou-se os olhos para quardar a castidade, como
nos refere Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se queremos conservar a
castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtude, abstendo-nos de olhar o que
possa despertar em nós os maus pensamentos. "Não contemples a beleza alheia; disso
origina-se a concupiscência, que queima como o fogo" (Ecli 9, 8). À vista seguem-se as
imaginações pecaminosas, que acendem o fogo impuro.
São Francisco de Sales dizia: "Quem não quiser que o inimigo penetre na
fortaleza, deve conservar as portas fechadas". Por essa razão foram os Santos tão
cautelosos em seus olhares. Por temor de enxergarem inesperadamente qualquer objeto
perigoso, conservavam os olhos quase sempre baixos, e se abstinham de olhar coisas
inteiramente inocentes. São Bernardo, depois de um ano inteiro no noviciado, não sabia
ainda se o teto de sua cela era plano ou abobadado. Na igreja do convento havia três
janelas e ele não o sabia, porque conservara os olhos baixos. Evitavam os Santos, com
cautela maior ainda, pôr os olhos em pessoa de outro sexo. São Hugo, bispo, nunca
olhava para o rosto das mulheres com quem tinha de conversar. Santa Clara nunca
olhava para a face de um homem. Aconteceu uma vez que, levantando os olhos para a
Hóstia Sagrada, durante a Elevação, viu o rosto do sacerdote, com o que ficou
profundamente aflita.
Julgue-se agora quão grande é a imprudência e temeridade dos que, não
possuindo a virtude dum desses Santos, ousam passear suas vistas em todas as pessoas,
não exceptuando as de outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tentações e do perigo
de pecar. São Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações que levaram São Bento a
revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar imprudente sobre uma senhora. São
Jerônimo, achando-se na gruta de Belém, onde continuamente orava e macerava seu
corpo com as mais atrozes penitências, foi por longo tempo atormentado pela lembrança
das damas que vira tempos antes em Roma. Como, pois, poderemos ficar preservados
de tentações, quando nos expomos ao perigo, olhando e até fitando complacentemente
pessoas de outro sexo?
O que nos prejudica não é tanto o olhar casual como o premeditado, o mirar.
Razão porque Santo Agostinho diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): "Se vossos olhos
casualmente caírem sobre uma pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial, guardai-vos,
ao menos, de fitá-la". E São Gregório diz: "Não é lícito contemplar ou extasiar-se com a
vista daquilo que não é lícito desejar, pois, ainda que expulsemos os maus pensamentos
que costumam seguir o olhar voluntário, deixam sempre uma mancha na alma". Tendose
perguntado ao irmão Rogério, franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se
mostrava tão reservado em seus olhares, quando trata va com mulheres, respondeu: "Se
o homem foge à ocasião, Deus o protege; se se expõe a ela, Nosso Senhor o abandona e
facilmente cairá no pecado".
Suposto mesmo que a liberdade que se concede aos olhos não produzisse outros
males, impediria sempre o recolhimento da alma durante a oração; pois tudo o que
vimos e nos impressionou, apresenta-se aos olhos de nossa alma e nos causa uma
imensidade de distrações. Quem já tem recolhimento de espírito durante a oração, tome
muito cuidado para não se ver privado dessa graça dando liberdade a seus olhos.
Está fora de dúvida que um cristão que vive sem recolhimento de espírito não
pode praticar as virtudes cristãs da humildade, da paciência, da mortificação, como
deveria. Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos para objetos que
elevam para Deus o nosso espírito. "Olhos baixos elevam o coração para o Céu", dizia
São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad Diocl.) escreve: "Onde habita Cristo
com Seu amor, reina aí a modéstia". Com isso não quero, porém, dizer que nunca se
deva levantar os olhos ou considerar coisa alguma; pelo contrário, é até bom, às vezes,
olhar coisas que elevam nosso coração para Deus, como santas imagens, prados
floridos, etc, já que a beleza dessa criatura nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se notar também que a modéstia dos olhos é necessária não só para nosso
próprio bem, como para a edificação do próximo. Só Deus vê o nosso coração; os
homens vêem apenas nossas obras externas e, ou se edificam, ou se escandalizam com
elas. "Pelo rosto se conhece o homem", diz a Escritura (Ecli 19, 26), isto é, pelo exterior
se depreende o que é o homem interiormente. Todo cristão, por isso, deve ser o que era
São João Batista, conforme as palavras do Salvador (Jo 5, 35): "Uma lâmpada que arde
e ilumina". Interiormente deve arder em amor divino; exteriormente, alumiar, pela
modéstia, a todos os que o vêem. Também a nós se podem aplicar as palavras que São
Paulo dirigiu a seus discípulos (I Cor 4, 9): "Somos o espetáculo dos anjos e dos
homens". "A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens" (Filip 4, 5).
Pessoas devotas são observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso, sua
modéstia deve ser notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas contas a Deus no
dia do Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os outros e os
estimulamos à prática da virtude.
É celebre o que se conta de São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele o
convento junto a uma companheiro, dizendo que ia pregar; tendo dado uma volta pela
cidade com os olhos baixos, entrou novamente no convento. 'Mas quando farás o
sermão?', perguntou-lhe o companheiro. 'Já o fiz, respondeu-lhe o Santo, consistiu todo
no resguardo dos olhos, do que demos exemplo ao povo'.
Santo Ambrósio diz que a modéstia das pessoas virtuosas é uma exortação mui
poderosa ao coração dos mundanos. "Quão belo não seria se bastasse te apresentares em
público para fazeres bem aos outros!" (In ps. 118, s. 10). De São Bernardino de Sena se
conta que, mesmo antes de entrar para o convento, bastava só a sua presença para pôr
fim às conversas livres de seus companheiros; mal o avistavam, diziam uns para os
outros: Silêncio, Bernardino vem vindo; e então calavam-se ou começavam a falar de
outras coisas. Santo Efrém, segundo o testemunho de São Gregório de Nissa, era tão
modesto, que já a sua vista estimulava à devoção, e não se podia vê-lo sem se sentir
levado a se tornar melhor. Mais admirável ainda é o que nos refere Suvio, do santo
sacerdote e mártir Luciano: só por sua modéstia moveu muitos pagãos a abraçarem a
santa Fé. O imperador Mazimiano, que fôra disso informado, temendo sentir a sua
influência e ser obrigado a converter-se, citou-o à sua presença, mas não quis vê-lo, e
sujeitou-o ao interrogatório ocultando-o a suas vistas por uma cortina estendida entre os
dois.
Nosso ideal mais perfeito de modéstia foi, porém, o nosso Divino Salvador
mesmo, pois, como nota um célebre autor, os Evangelistas dizem, várias vezes, que o
Redentor levantou os olhos em certas ocasiões, dando a entender, com isso, que tinha
ordinariamente os olhos baixos. Por isso exalta o Apóstolo a modéstia de seu Divino
Mestre, escrevendo a seus discípulos: "Rogo-vos pela mansidão e modéstia de Cristo"
(II Cor 10, 1).
Concluo com as palavras de São Basílio a seus monges: "Se quisermos que
nossa alma tenha suas vistas sempre postas no Céu, filhos queridos, conservemos
nossos olhos sempre voltados para a terra". De manhã, ao despertar, devemos já pedir,
com o Profeta: "Afastai meus olhos, Senhor, para que não vejam a vaidade" (Sl 118,

§ II. DA VIGILÂNCIA SOBRE OS PENSAMENTOS - Tratado da Castidade



TRATADO DA CASTIDADE
Bem-aventurados os puros.
(SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO)


1) A respeito dos maus pensamentos encontra-se, muitas vezes, um duplo engano:
a) Almas que temem a Deus e não possuem o dom do discernimento e são inclinadas aos escrúpulos, pensam que todo mau pensamento que lhes sobrevêm é já um pecado. Elas estão enganadas, porque os maus pensamentos em si não são pecados, mas só e unicamente o consentimento neles. A malícia do pecado mortal consiste toda e só na má vontade, que se entrega ao pecado com claro conhecimento de sua maldade e plena deliberação de sua parte. E, por isto, Santo Agostinho ensina que não pode haver pecado onde falta o consentimento da vontade.
Por mais que sejamos atormentados pelas tentações, pela rebelião de nossos sentidos, pelas comoções ou sensações desregradas de nossa natureza corpórea, não existe pecado algum enquanto faltar o consentimento, como ensina também São Bernardo, dizendo: "O sentimento não causa dano algum, contanto que não sobrevenha o consentimento".
Para consolar tais almas timoratas e escrupulosas, quero oferecer-lhes aqui uma regra prática, aceita por quase todos os teólogos: Quando uma alma que teme a Deus e detesta o pecado, duvida se consentiu ou não em um mau pensamento, não está obrigada a confessar-se disso, porque, em tal caso, se tivesse realmente cometido um pecado mortal, não estaria em dúvida a esse respeito, porque o pecado mortal, para uma alma que teme a Deus, é um monstro tão horrendo, que não poderá ter entrada em seu coração sem o perceber.
b) Outros, que possuem uma consciência mais relaxada e são mal instruídos, julgam, pelo contrário, que os maus pensamentos nunca são pecados, mesmo havendo consentimento neles, contanto que não se chegue a praticar. Este erro é muito mais pernicioso que o primeiro. O que se não pode fazer, não se pode também desejar; por isso, o mau pensamento em si contêm toda a malícia do ato. Assim como as más obras nos separam de Deus, também os maus pensamentos nos afastam d'Ele e nos privam de Sua graça. "Pensamentos perversos nos separam de Deus" (Sab 1, 3). Como as más obras estão patentes aos olhos de Deus, também Sua vista alcança todos os nossos maus pensamentos para condená-los e puni-los, pois "um Deus de ciência é o Senhor, e diante d'Ele estão patentes todos os pensamentos" (I Rs 2, 3).
2) Logo, nem todos os maus pensamentos são pecados, e nem todos os que são pecados trazem em si o mesmo cunho de malícia. Devemos considerar três coisas quando se trata de um pecado de pensamento, a saber: a sugestão, a deliberação e o consentimento. Alguns esclarecimentos a esse respeito:
a) Sob a palavra sugestão entende-se o primeiro pensamento que nos incita a praticar o mal que nos vem à mente. Esta instigação ou incitamento ainda não é pecado; se a vontade a repele imediatamente, é mesmo uma fonte de merecimentos. "Para cada tentação a que opuseres resistência, se te deverá uma coroa", diz Santo Antão. Até os Santos foram perseguidos por tais pensamentos. São Bento revolveu-se sobre os espinhos para vencer uma tentação impura, e São Pedro de Alcântara lançou-se em poço de água gelada. São Paulo nos informa que também ele foi tentado contra a pureza: "E para que a grandeza das revelações não me ensoberbesse, foi-me dado um espinho em minha carne, um anjo de satanás para me esbofetear" (2 Cor 12, 7). O Apóstolo suplicou várias vezes ao Senhor que o livrasse desse inimigo: "Por essa causa roguei ao Senhor três vezes que o afastasse de mim". O Senhor não quis, porém, dispensá-lo do combate, e respondeu-lhe: "Basta-te a minha graça". E por que não queria o Senhor livrá-lo? Para que adquirisse maiores méritos por sua resistência à tentação: "Porque a virtude se aperfeiçoa na fraqueza". São Francisco de Sales diz que quando um ladrão procura arrombar uma porta, é porque não está ainda dentro da casa; assim também, quando o demônio tenta uma alma, é porque se acha ela ainda na graça de Deus.
Santa Catarina de Sena foi uma vez horrivelmente atormentada pelo demônio, durante três dias, com fortes tentações impuras. Apareceu-lhe então o Senhor para consolá-la, e ela perguntou-lhe: -Mas onde estivestes, Senhor meu, durante estes três dias? Jesus respondeu-lhe: Dentro do teu coração, dando-te força para resistires à tentação. E o Senhor deu-lhe a conhecer que o seu coração estava, depois da tentação, mais puro que antes.
b) À sugestão segue-se a deleitação. Quando nos damos ao trabalho de repelir imediatamente a tentação, sentimos nela uma certa complacência ou prazer, que nos vai arrastando ao consentimento. Mesmo então, se a vontade não dá seu assentimento, não há pecado mortal; quando muito, poderá haver pecado venial. Se, porém, não recorrermos então a Deus e não nos esforçarmos por resistir à tentação, facilmente nos sentiremos arrastados ao consentimento e perdidos, segundo as palavras de Santo Anselmo (De similit., c. 40): "Se não procuramos impedir a deleitação, ela se transformará em consentimento e matará a alma".
Uma senhora, que tinha fama de santa, teve, um dia, um mau pensamento, que não repeliu imediatamente, e pecou por pensamento. Por vergonha deixou de confessar esse pensamento criminoso e morreu, pouco depois, em estado de pecado. Porque morreu com fama de santidade, mandou o bispo que fosse sepultada em sua própria capela. No dia seguinte, porém, apareceu-lhe ela, toda circundada de fogo, e confessou lhe, infelizmente já tarde demais, que estava condenada por ter consentido num mau pensamento.
c) Toda a malícia do mau pensamento está, porém, no consentimento. Havendo pleno consentimento, perde-se a graça de Deus e chama-se sobre si a condenação eterna, quer se tenha o desejo de cometer um pecado determinado, quer se pense ou reflita com prazer no pecado como se o estivesse cometendo. Esta última espécie de pecado chama-se uma deleitação deliberada ou morosa, e deve-se distinguir bem da primeira, isto é, do pecado de desejo. 
3) Se fores, pois, molestada por tais tentações, alma cristã, não deves perder a coragem, antes, animosamente combater, empregando os meios que te vou indicar, e não sucumbirás:
a) O primeiro é humilhar-se continuamente diante de Deus. O Senhor castiga muitas vezes os espíritos soberbos, permitindo que caiam em qualquer pecado impuro. Sê, pois, humilde, e não confies em tuas próprias forças. Davi confessa que caiu no pecado por não ter se humilhado e ter confiado demais em si mesmo: "Antes de me haver humilhado, eu pequei" (Sl 118, 67). Devemos temer sempre a nossa própria fraqueza e colocar em Deus toda a nossa confiança, esperando firmemente que nos preserve desse vício.
b) O segundo meio é recorrer imediatamente a Deus, sem entrar em diálogo com a tentação. Logo que se apresentar ao nosso espírito um pensamento impuro, devemos elevar a Deus imediatamente o nosso pensamento ou dirigi-lo a qualquer objeto indiferente. A coisa melhor será invocar imediatamente os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria, e não cessar de repeti-los até desaparecer a tentação. Se ela for muito forte, será bom repetir muitas vezes o seguinte propósito: Ó meu Deus, prefiro morrer a Vos ofender. Peça-se socorro, dizendo: Ó meu Jesus, socorrei-me. Maria, assisti-me. Os Nomes de Jesus, Maria e José possuem uma força especial para afugentar as tentações do demônio.
c) O terceiro meio é a recepção assídua dos Santos Sacramentos da Confissão e da Comunhão. É de suma importância revelar quanto antes ao confessor as tentações impuras. "Uma tentação revelada já está meio vencida", diz São Filipe Néri. E se alguém teve a infelicidade de consentir em uma tentação, não se demore nenhum instante em se confessar disso. São Filipe Néri livrou um rapaz desse vício, induzindo-o a confessar-se logo depois de cada queda.
A Santa Comunhão, está fora de dúvida, confere uma grande força na resistência às tentações desonestas. O Sangue de Jesus Cristo, que recebemos na Sagrada Comunhão, é chamado pelos Santos de 'Vinho gerador de Virgens' (Zac 9, 17). O vinho natural é um perigo para a castidade; este Vinho Celestial é o seu conservador.
d) O quarto meio é a devoção à Imaculada Mãe de Deus, que é chamada a Virgem das Virgens. Quantos jovens não se conservaram puros e castos como Anjos, devido à devoção à Santíssima Virgem!
e) O quinto meio é a fuga da ociosidade. O Espírito Santo diz (Ecli 33, 21): "A ociosidade ensina muita coisa má", isto é, ensina a cometer muitos pecados. E o profeta Ezequiel (Ez 16, 49), assevera que foi a ociosidade a causa das abominações e ruína final dos habitantes de Sodoma. Conforme São Bernardo, a ociosidade motivou a queda de Salomão. Por isso São Jerônimo exorta a Rústico (Ep. ad Rust., 2) que esteja sempre ocupado, para que o demônio não o preocupe com suas tentações. "Quem trabalha é tentado por um demônio só; quem vive ocioso, é atacado por uma multidão deles", diz São Boaventura.
f) O sexto meio consiste no emprego de todas as precauções exigidas pela prudência, tais como a modéstia dos olhos, a vigilância sobre as inclinações do coração, a fugida das ocasiões perigosas, etc.

§ I. EXCELÊNCIA DA CASTIDADE - Tratado da Castidade



TRATADO DA CASTIDADE
Bem-aventurados os puros.
(SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO)

§ I. EXCELÊNCIA DA CASTIDADE
Ninguém melhor que o Espírito Santo saberá apreciar o valor da castidade. Ora, Ele diz: "Tudo o que se estima não pode ser comparado com uma alma continente" (Ecli 26, 20), isto é, todas as riquezas da terra, todas as honras, todas as dignidades, não lhe são comparáveis. Santo Efrém chama a castidade de "a vida do espírito"; São Pedro Damião, "a rainha das virtudes"; e São Cipriano diz que, por meio dela, se alcançam os triunfos mais esplêndidos. Quem supera o vício contrário à castidade, facilmente triunfará de todos os mais; quem, pelo contrário, se deixa dominar pela impureza, facilmente cairá em muitos outro vícios e far-se-á réu de ódio, injustiça, sacrilégio, etc.
A castidade faz do homem um anjo. "Ó castidade, exclama Santo Efrém (De cast.), tu fazes o homem semelhante aos anjos". Essa comparação é muito acertada, pois os anjos vivem isentos de todos os deleites carnais; eles são puros por natureza; as almas castas, por virtude. "Pelo mérito desta virtude, diz Cassiano (De Coen. Int., 1. 6, c. 6), assemelham-se os homens aos anjos"; e São Bernardo (De mor. et off., ep., c. 3): "O homem casto difere do anjo não em razão da virtude, mas da bem-aventurança; se a castidade do anjo é mais ditosa, a do homem é mais intrépida". "A castidade torna o homem semelhante ao próprio Deus, que é um puro espírito", afirma São Basílio (De ver. virg.).
O Verbo Eterno, vindo a este mundo, escolheu para Sua Mãe uma Virgem, para pai adotivo um virgem, para precursor um virgem, e a São João Evangelista amou com predileção porque era virgem, e, por isso, confiou-lhe Sua santa Mãe, da mesma forma como entrega ao sacerdote, por causa de sua castidade, a santa Igreja e Sua própria Pessoa.
Com toda a razão, pois, exclama o grande doutor da Igreja, Santo Atanásio (De virg.): 'Ó santa pureza, és o templo do Espírito Santo, a vida dos Anjos e a coroa dos Santos!".
Grande, portanto, é a excelência da castidade; mas também terrível é a guerra que a carne nos declara para no-la roubar. Nossa carne é a arma mais poderosa que possui o demônio para nos escravizar; é, por isso, coisa muito rara sair-se ileso ou mesmo vencedor deste combate. Santo Agostinho diz (Serm. 293): "O combate pela castidade é o mais renhido de todos: ele repete-se cotidianamente, e a vitória é rara". "Quantos infelizes que passaram anos na solidão, exclama São Lourenço Justiniano, em orações, jejuns e mortificações, não se deixaram levar, finalmente, pela concupiscência da carne, abandonaram a vida devota da solidão e perderam, com a castidade, o próprio Deus!"
Por isso, todos os que desejam conservar a virtude da castidade devem ter suma cautela: "É impossível que te conserves casto, diz São Carlos Borromeu, se não vigiares continuamente sobre ti mesmo, pois negligência traz consigo mui facilmente a perda da castidade".

O Crucifixo, "o livro de rezas do cristão" - Santo Afonso de Ligório

O crucifixo é o livro de rezas do cristão, é o breviário da fé, o epítome da ciência divina, o instrumento das bênçãos, o topo de todas as virtudes e o símbolo das esperanças imortais.

Fato admirável! Este símbolo, tão singelo quão sublime, está ao alcance de todas as idades; fala e compreende todas as línguas; corresponde a todas as necessidades, todas as condições, a todas as situações; instrui e consola; sustenta os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os fiéis e os pecadores, os sábios e os ignorantes; resume em si todas as exortações e todas as prédicas; é a figura tangível de todos os mistérios de nossa redenção. Que humano coração poderá conservar-se indiferente e frio em face de um benfeitor generoso? Ora, o Crucifixo é imagem daquele que nos salvou e que livrou do opróbrio a nossa família e da servidão todos os nossos antepassados.

Não é para admirar, pois, que lhe reservemos sempre um lugar de honra em nossa vida, que o beijemos com amor e que lhe não lancemos senão olhares cheios de simpatia, respeito e reconhecimento.

Estas impressões vivas e fortes, a alma cristã as tem mil vezes experimentado. E na verdade, para animar o fervor, basta considerar o crucifixo com uma atenção calma e serena. Não sei que secreta virtude sai dele então que brandamente nos toca e se insinua na alma, enternecendo-a, dilatando-a e elevando-a até Deus. Sem dúvida que emoções tais nem sempre se enlaçam num encadeamento de orações, mas em si contêm luminosas partículas que ao sopro de Deus se espalham esbraseantes como labaredas de amor. Demais as simples efusões de um coração comovido têm para Deus um preço infinitamente maior que as orações mais ricas e eloquentes.

Não, não é necessário saber ler para aprender a rezar: o Crucifixo é o livro dos iletrados, dos analfabetos e das crianças, mas é também para os sábios uma filosofia e uma teologia.

Pois, o que sabem acaso os homens que aprenderam muitas coisas e que, no meio de todas essas coisas, ignoram a Deus e ignoram o que eles próprios são? A ciência que não esclarece nem as origens nem os fins últimos do homem é bem insuficiente e estéril. Por que está ele na terra? De onde vem ? Para onde vai? Que caminho deve ele seguir? Qual a causa das suas lutas e dos seus sofrimentos? Qual é a condição do seu triunfo e da sua reabilitação?

Qual é em definitivo o fim da sua vida e da sua morte?

A estes problemas capitais o Crucifixo dá soluções. Faz-nos ele pressentir a nobreza de nossa origem e a grandeza de nosso destino, resume ao mesmo tempo a doutrina das lágrimas e a ciência das celestes consolações e tanto ilumina o passado como as coisas presentes e futuras.

Todos os ensinamentos do cristianismo descem do Crucifixo como do alto de um púlpito sagrado.

Meditando-os com fé, nós contemplamos a majestade da Santíssima Trindade; adoramos o filho de Deus encarnando na natureza humana, o divino Emanuel, o desejado das nações, a esperança única dos descendentes de Eva; glorificamos enfim a Vítima que, para nos resgatar, oferece o Seu sangue e expira na cruz "Transpassaram-lhe os pés e as mãos", dizia o profeta; lacerou-lhe a fronte uma coroa de espinhos e a ponta de uma lança rasgou-lhe o coração.

O emblema deste augusto sacrifício não nos dá somente a chave da ciência; inicia-nos também no mistério das virtudes sobrenaturais. A linguagem do Crucifixo, bem a compreendem os que produzem na sua vida cristã a paciência, a abnegação, a resignação, a caridade e a divina mansidão de Jesus Cristo.

O que é mais capaz de nos inspirar o horror do mal e o amor do bem, do que esta imagem sagrada?! Que tocante exortação há nela às almas generosas! É

Jesus Cristo quem lhes fala: "Aquele que me quer acompanhar, renuncie-se a si próprio e siga-me!" O crucifixo estimula a coragem, dissipa o medo e mostra todo o valor dos sofrimentos; desde então cada dor que se junte às dores de Jesus Cristo, como a gota da água ao oceano, adquire um mérito que faz jus a uma recompensa.

O divino Salvador quer que participemos do conteúdo do seu cálice. Ele, sofrendo por nós, não aboliu o sofrimento, nem morrendo por nós nos isentou da morte; mas por seu sacrifício voluntário santificou os sofrimentos e deu vida à morte.

Grande lição que nos indica tudo o que devemos fazer e tudo o que devemos esperar. O crucifixo nos mostra a razão por que sofremos, o modo como é preciso sofrer e quais são os frutos dos sofrimentos.

Dá-nos, além disso, o exemplo da obediência cristã. Em Jesus Cristo não se veem os murmúrios nem revoltas nem represálias; ele se submete sem resistência a todas as provas e a todos os ultrajes. Que mansidão e que magnanimidade! Que bondade imensa e que inesgotável misericórdia!

O Crucifixo fala aos olhos e ao coração, excita os bons desejos, nutre a piedade e abre a fonte das lágrimas. Ele gera os heróis e gera os mártires.

Ainda mesmo que a alma infiel se ache inteiramente em trevas, a cruz dardeja um rutilante raio que acorda a consciência, apazigua o desespero e enxota os terrores.

A cruz é como uma ponte misteriosa lançada sobre o abismo; é um caminho por onde se vai à pátria; é a alavanca que nos ergue acima de nós mesmos e que nos transporta para os braços de nosso Pai. O Salvador crucificado pagou o resgate do pecador e advoga a nossa causa. Ele é hoje o que era ontem e o que será nos séculos dos séculos; cura os enfermos e dá vista aos cegos, ouvido aos surdos, palavra aos mudos e vida aos mortos. Habituemo-nos a conversar com o nosso Crucifixo; estudemos este luminoso símbolo. Ah! Desgraçadamente muitos cristãos o não compreendem! Amemo-lo como se ama um amigo fiel e um supremo consolador; veneremo-lo como se venera a venerabilíssima imagem de um Salvador. Ele é o estandarte da nossa religião; cerquemo-lo de ferventes homenagens e ergamo-lo bem alto nos combates da fé. É o escudo da nossa esperança oponhamo-lo com firmeza às seduções do mundo. É o para-raios que protege os lares; reunamo-nos em torno dele no dia das tempestades e dos perigos. E quando soar a nossa última hora tomemo-lo às mãos e apertemo-lo ao seio, que ele suavizará a nossa agonia, dissipará as trevas que nos rodearem e nos abrirá as portas do céu.

Fonte: Mãe Cristã